Milner olhou pela janela de seu novo
quarto. Havia neve lá fora, e o tempo continuava hostil. Milner
também não estava em um humor amigável.
Se ao menos tivesse conseguido
alcançar o homem de capa escura, poderia ter obtido algumas
respostas. Porém não conseguiu.
Perseguiu-o por mais de um mês, desde
Águas Profundas até ali. Às vezes o homem sumia no horizonte,
apenas para reaparecer bastante perto em algumas horas.
Mas por mais que tentasse, Milner não
tinha sucesso em alcançá-lo. E nem o homem de capa escura em
despistá-lo.
Enfim parecia que a sorte tinha
decidido sorrir a um dos dois. E para a decepção de Milner, não
foi ele o felizardo.
Será que seu irmão tivera mais sorte
do que ele? E como estariam suas irmãs e sua mãe? Sabia que elas
tinham partido para Portal de Baldur, mas não teve mais notícias
delas. A mãe disse que iria para a casa de um irmão, onde estaria
segura.
Mas Milner não tinha certeza disso.
Seu pai, com certeza, tinha todos os motivos para acreditar estar em
segurança. Pela maneira como Milner o encontrou, o homem deve ter
morrido com esta crença, já que não parecia ter sequer percebido o
assassino. A cena ainda assombrava Milner, e a lembrança apenas
serviu para irritá-lo ainda mais. Levou à mão ao cabo da espada,
preso ao cinturão de couro cru. Se ao menos tivesse alcançado o
homem da capa escura.
A porta se abriu, e seus companheiros
de quarto entraram, conversando. Um gnomo e um humano tão grande que
mais parecia um gigante. A julgar pelas vestes de ambos, era provável
que fossem dois bandoleiros.
Como dizia o antigo ditado, teria que
dormir com um olho aberto. Ou se arriscar a acordar e descobrir sua
mochila e seus bolsos vazios. Isso, é claro, considerando que
chegasse a acordar.
***
O dia amanheceu frio e silencioso. O
gnomo acordou cedo, mas não antes do rapaz com quem ele e Lagosh
dividiram o quarto. O homem já havia saído, e Zankas não perdeu
tempo em conferir seus pertences. Não que houvesse muito o que
conferir.
A bolsa de moedas tinha apenas o
suficiente para mais uma refeição. Por sorte a proprietária da
taverna prometeu refeições grátis por mais um dia. Mas e depois?
Lagosh roncava sonoramente. Resmungou
alguma coisa em sua língua nativa, e então voltou a roncar.
Zankas o conheceu no Vale da Cicatriz.
Mais precisamente, em um alojamento de escravos. O gnomo havia sido
capturado em uma emboscada. Matou dois dos atacantes, e aleijou pelo
menos outros dois. Mas acabou preso. Devidamente espancado, foi
atirado em uma cela imunda. Em alguns dias, outros homens foram
colocados ali. Entre eles, o jovem louro, forte como um boi e bravo
como um javali, de nome Lagosh.
Os prisioneiros daquela cela estavam
destinados à arena. Um costume importado de terras mais selvagens, e
que nunca foi bem visto pelos demais Vales. Mas os regentes do Vale
da Cicatriz não davam à mínima para isso, e nem para outras
atrocidades que os demais Vales se orgulhavam de não permitir dentro
de suas fronteiras. Roubos e mortes eram constantes na Cicatriz.
Enclaves de magos com propósitos duvidosos, tavernas cheias de
piratas e uns poucos mercadores de escravos também freqüentavam a
capital do Vale.
Após algumas batalhas, apenas Lagosh
e Zankas começaram a ganhar destaque. Lutando juntos, eram páreo
para adversários cada vez mais poderosos, rendendo rios de dinheiro
a seus donos e aos anotadores de apostas.
Quando os demais donos de escravos
começaram a se negar a fornecer adversários para a dupla, começaram
as batalhas com monstros.
Mas foram nestes dias que a grande
praga surgiu. Houve quem dissesse que era um castigo dos deuses.
Outros davam como certo que o início da doença se devia a uma razão
bem menos divina – ela teria se espalhado rapidamente à partir de
um bordel visitado constantemente por marinheiros sulistas.
A verdade é que como a praga começou
pouco importava ao gnomo. O importante mesmo é que ela lhe deu
condições de escapar. Quando cada homem que fungava ou espirrava
era olhado com terror, aqueles que ainda estavam saudáveis começaram
a abandonar o lugar. Em pouco tempo, os guardas haviam abandonado
seus postos, deixando os demais escravos para morrer. Se de fome ou
de doença, pouco importava.
Mas Zankas tinha seus truques nas
mangas, e com algum tempo, conseguiu providenciar um jeito de escapar
de sua cela, levando consigo o bárbaro Lagosh.
Viajaram durante dias pelas florestas
da antiga Corte Élfica, sempre indo para o oeste, deixando para trás
as celas e os doentes. Até chegar ao Vale das Sombras.
A barriga do gnomo roncou, e ele
pensou com tristeza na fome que se seguiria caso não arrumassem
algumas moedas logo. O pouco que conseguiram na fuga da Cicatriz
havia acabado, e no Vale das Sombras não haviam corpos para ser
revistados em busca de dinheiro. Então precisavam de trabalho. Ou
colocar o pé na estrada novamente, e sobreviver como pudessem até a
próxima cidade.
***
O vulto estava agachado. Praticamente
invisível, escondido pela escuridão da noite, analisava as marcas
no chão. A tribo havia fugido para sudeste. Sabia que eles tinham
visto algo que os assustara, mas não sabia o quanto exatamente tinha
sido visto pelos orcs. Na verdade, não achava que eles sequer
entendessem o que haviam presenciado, mas isso não importava.
Mas suas ordens eram claras.
Levantou-se, e puxando o capuz sobre a
cabeça, começou à caminhar seguindo o rastro deixado pelos orcs.